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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

AS ÚLTIMAS VONTADES

À janela da cozinha, com aquelas amigas...




Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.
Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...
Deixa ficar a flor.
E nem murmures. Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.
Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se, fechados,
sem tréguas, os retratos!
Deixa ficar a flor.
A flor? Não a conheces.
Bem sei. Nem eu. Ninguém.
Deixa ficar a flor.
Não digas nada. Ouve.
Não ouves o degrau?
Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...
não digas nada. Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.
Deixa ficar a flor.

David Mourão Ferreira

17 comentários:

  1. Pois é... com o feriado encontrei tudo fechado e não consegui comprar pontuação para colocar aqui.
    Se fosse há sessenta e tal anos era palmatoado garantida; também existiam as vergastadas com cana da índia; a ementa era variada.
    Diga-me se não posso escrever e pontuar assim (se não estiver ocupada com o sol, areia e mar de S. Martinho - o Verão está ainda por aí)

    "Hoje, dada a ressaca da pizorga de ontem, não pensava publicar nenhuma peta, tanto mais que é feriado (em todo o país, ilhas e arredores, estes - arredores - configurando as nossas águas territoriais), mas saquei do táxi para passear e passaram-se coisas, nenhuma importante, ainda que todas elas dignas de ser escritas ou contadas não tanto para vocês, mas sim para mim, para desabafar ou talvez transformar inevitavelmente a minha parcela do mundo em palavras, em frases, a “modos que” como um documento escrito que demonstre, ainda que só seja isso, que estou vivo, que continuo vivo, que o meu táxi existe porque o escrevo e que eu também existo ante os teus olhos (não saberias de mim sem me ler) e precise ser eu para ti, necessite ser, ao fim e ao cabo, ver-me reflectido nesses teus olhos que me lêem para saber que existo, que tenho um sentido mais ou menos justificado, enfim, que tudo isto me vem à mente e que hoje, enquanto circulava ocupado pela rua de S. Roque da Lameira (com um homem de meia idade no assento traseiro de meu táxi), me deu para me fixar no escaparate de uma loja e com isto vi-me reflectido na sua grande montra, mas não ao passageiro que viajava comigo, isto é, vi o reflexo do meu táxi e eu ao volante, mas não o reflexo do passageiro sentado do mesmo lado que eu, atrás de mim (via nitidamente a sua janela completamente vazia, sem ocupante) e este estranho acontecimento, como digo, levou-me a saltar o feriado e escrever, quiçá movido pelo medo a desaparecer eu também no reflexo dos vossos olhos, do mesmo modo que desapareceu aquele meu passageiro, no reflexo da montra da loja, um medo atroz asseguro-vos e, se disse no princípio que não me tinha sucedido nada importante, agora que penso melhor, (Puxa!), talvez aquele utente fosse um fantasma ou um vampiro e eu aqui, dando voltas ao miolo e falando de existencialismo e relativismo enfocado à literatura, (que porra de relativismo!), aquele tipo que transportei não era deste mundo e ponto final."

    Um bom fim de semana.

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    1. Olá, José.
      A sua escrita apanhou-me ocupada, não com o Sol, a areia e o mar de S. Martinho, mas com a República. Mais precisamente com as comemorações do 5 de Outubro, que independentemente de deixar de ser feriado, não deixará de pontuar no meu peito como uma data importantíssima da História de Portugal, à qual estão subjacentes valores pelos quais pugno. Só lastimo que tenham morto o rei. Acho que não seria necessário. A vida é um dom precioso e eu pacifista por natureza. Para mim, basta esgrimir a palavra. E isso poderá assumir-se como arte.

      Quanto ao seu texto, a minha modesta opinião:

      Está-se perante um pedaço de prosa criativa em que se privilegia o uso da linguagem informal (com as marcas do português falado). Logo, quem escreve e neste caso o José, pode dar-se a liberdades que a linguagem formal (com as marcas do português escrito), noutro tipo de texto, nunca permitiria.



      Conhece, por exemplo, valter hugo mãe? Escreve só com minúsculas, embora não enjeitando o prazer de em "O Apocalipse dos Trabalhadores" criar personagens, como as empregadas domésticas de Bragança com uma capacidade de dedução simular à de quem estudou a lógica aristotélica. E tudo em nome de quê? Da liberdade de expressão.

      E Matilde Rosa Araújo, que tantas vezes se "esquece" da pontuação?! Que consegue com isso? Universalizar o texto de tal modo, que, cada um que o lê, fazendo as suas próprias pausas, se apodera dele, passando a haver tantos textos com leitores.

      Ouviu fala em "A visita do Brutamontes" (não recordo a autora? Treze histórias de vida independentes em que as personagens surpreendentemente se encadeiam. Pois tem um capítulo inteiro escrito em power point! E sabe que até resultou?! Quem diria, não ?!

      Quantos exemplos lhe poderia apontar para dizer que cada qual deve escrever (o que inclui pontuar) como sente? Uma infinidade.

      Claro que tudo isto que sucintamente lhe digo é altamente discutível, servindo unicamente para lhe dizer que também o José é livre de se exprimir como gosta, sente e quer. Nem todos os que o leem irão gostar, mas isso também acontece com os textos literários, dos autores consagrados.

      Eu gosto do seu texto com a pontuação que tem. Saiu de um folgo, com pausas curtas, num encadeamento de palavras similar ao vai-vem da vida. É um registo da reflexão acontecida num momento do dia, num parágrafo único. Se usasse mais o ponto final, perder-se-ia o impacto do fim.

      Há pequenas coisas que eu mudaria, na estrutura de algumas frases. Vou copiar o texto e emendarei a cor diferente, tal como faço quando os amigos me pedem para lhes corrigir os romances que escrevem (ainda só aconteceu corrigir três - não me pense muito experiente)), mas isso não significa que eu possuo a verdade. A decisão última de aceitar ou não o que proponha é sua, unicamente sua, porque seu é o sentimento que ditou aquilo que escreveu. Mandar-lhe-ei, depois, o texto por email, pois julgo que tenho o seu endereço.

      Até breve.


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    2. Saiu mais de um fôlego... :))) àquela hora já não se vê bem... para além de eu detestar ler o que escrevo. Às vezes não perderia nada por tentar... Há por aí outras faltas que me parecem menos graves. Dê-me o benefício da dúvida. :)))

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  2. Não sei o que se passou... fechei o envelope, coloquei o selo e enviei a carta... foi o cabo dos trabalhos para a inserir na ranhura da caixa do correio (rsrsrs). Primeiro era anónimo, mas depois de me apresentar lá me reconheceu... estas máquinas...

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    1. Coisa do carteiro... não queria trabalhar em dia feriado. :))

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  3. "Quantos exemplos lhe poderia apontar para dizer que cada qual deve escrever (o que inclui pontuar) como sente? Uma infinidade."

    Fiquei mais descansado.
    É que pela atividade profissional que desenvolvi (fui obrigado pela força das circunstâncias, digo eu, que é para ver de descanso a minha consciência, pesadíssima, porque não segui, em tempo, a minha tendência, quem sabe?) nunca consegui apegar-me à gramática, de modo que fiquei sempre pelo que deduzo e aprendo a ler os outros. E quanto mais se hesita, já se sabe, menos se faz, a ponto de se correr o risco de cair no marasmo de não ser ativo, mesmo que a escrever um bocado à trouxe-mouxe.

    A propósito do poema de David Mourão Ferreira, encontrei isto na Net.
    http://2.bp.blogspot.com/-N-kUL5e_jKs/UHB2noe9vRI/AAAAAAAAUaU/bq-_rD3it_w/s1600/images%2B%25281%2529.jpg

    A poesia de David Mourão Ferreira é incomparável. Bela.

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    1. Olá, António.
      Sempre ouvi dizer que a modéstia em excesso era sinónimo de vaidade. Não estará a pedir elogio? Brinco consigo, não se zangue :)
      O António escreve com clareza e convicção e eu gosto de lê-lo. E é o que faço, nas visitas regulares ao seu blog, quer comente quer não. O meu amigo goza ainda do privilégio de comunicar através das belas fotos que bate e publica, para nosso deleite. Isso é outra forma de escrita, a pictográfica, aquela que o Homem utilizou desde o seu início nos tempos. Não está na posse da gramática? Está sim, desde que começou a falar (e antes de falar, até já comunicava por gestos e através do choro - ou julga que os bebés choram só para nos dar cabo da cabeça?) :))e também sabe por experiência de pai e avô, que nem sequer aprendemos as diferentes classes de palavras (verbos, substantivos, and so on) ao mesmo tempo e também sabe que conforme a idade o número de vocábulos que conhecemos e utilizamos vai aumentando. Como vê não só sabe a gramática como ainda é capaz de teorizar sobre o assunto.
      Eu sei que os adultos se põem muito em causa, porque se sentem avaliados. Aprendi isso "dolorosamente", quando num ano letivo, em que "sentindo-me folgada" acumulei o meu trabalho na escola com a docência de uma turma de adultos (das 21h às 23h - que loucura!)onde havia gente de todas as idades, até mais do que aquela que a minha mãe teria à época (e a minha mãe tem mais 32 anos que eu). Eu era uma jovem de trinta e poucos anos, que tinha gozado do privilégio de ter crescido numa família onde tudo era falado à mesa da refeição e onde todos tinham o direito de ser ouvidos. Eu nasci a ser ouvida e achando que isso era um direito, tão natural como usufruir de ar para respirar e sou uma fã incondicional da maiêutica, que era o método utilizado por Sócrates (não o nosso, o outro...) que consiste em pôr questões sobre as temáticas em estudo, para se encontrarem as respostas. Ora então imagine o que seria para mim questionar aquela turma e vê-los a encolher-se, ou a responder-me "Sra professora, isso é muito areia para a minha camioneta". Um dia a minha contida efervescência saiu em jacto e expliquei que se eles soubessem o que eu sabia, eu não estaria ali, mas em casa, sentadinha no sofá a fazer renda e ver televisão. Eu sabia coisas que eles não sabiam tal como eles possuíam conhecimento sobre matérias que eu não dominava. E dei mesmo exemplos, com as profissões de alguns. Expliquei que as aulas não viveriam mais da voluntariedade de quem quisesse responder ou ir ao quadro, eu iria começar a questionar por uma ponta e terminaria na outra e quando chegasse ao fim voltaria ao princípio. E rematei: "acabou a areia, pararam as camionetas"
      Para que serve tanta conversa? Questiona o António, para lhe dizer que não se preocupe com opiniões e escreva. A escrita organiza o raciocínio e desata os nós ao pensamento. Os seus seguidores gostam do que escreve.
      Deixe-se de tretas e vá escrever, que é mal empregado à boa vida. :)))

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  4. Para seguir o link anterior basta selecionar o endereço e ir para o dito ... eheh (sou eu a brincar, então a Isabel não sabe?!...).

    Também podia determinar essa ação por simples clic no link mas para isso eu devia saber usar a linguagem html na zona de comentários. Quer dizer, eu já soube, mas esqueci ...

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    1. Qualquer coisa está mal na transcrição do endereço proposto. Suponho tratar-se de um site com poemas de David Mourão Ferreira, mas não consigo abrir. Se ele estivesse bem escrito abriria por simples clic, tal como refere. Gosto muito de poesia: a forma privilegiada da expressão. Embora não goste de tudo aquilo a que vulgo se chama poesia. Também gosto de David Mourão Ferreira.
      Abraço fraterno.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. http://2.bp.blogspot.com/-N-kUL5e_jKs/UHB2noe9vRI/AAAAAAAAUaU/bq-_rD3it_w/s1600/images%2B%25281%2529.jpg

      Se selecionar com o rato do lado esquerdo de modo a ficar o fundo azul e depois clicar com o lado direito vai ver que o Windows lhe diz o que fazer.

      A não ser que eu esteja apanhado deste clima esgroviado que estamos a viver...

      Ah mas pode ter a certeza que vou continuar a escrever, à minha maneira, com fotografia. de preferência, nem que seja só para
      "A escrita organiza o raciocínio e desata os nós ao pensamento" ...

      De qualquer modo vou usar o Google++ para lá pôr aquela imagem .jpg

      Um abraço

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    4. Adorei ler. Quem terá escrito? Hoje não tenho tempo, mas voltarei para ver se descubro o autor.
      Obrigada por partilhar.
      Espero que não tenha atribuído à frase transcrita qualquer juízo de valor que estava completamente fora da minha cabeça quando a escrevi.

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    5. Mais non, Madame.

      Também não sei de quem a autoria daquele escrito. Mas achei a ideia muito romanesca, romântica até.

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  5. Difícil mas belo este poema. Atormentado. E atormentador. Há poemas - a poesia em geral, a boa direi - mata-me do coração!

    Beijo

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    1. Também, nesse dia, eu estava atormentada. As amigas morrem aos pares e a buganvília da vizinha, onde lavo a alma, à janela da cozinha, já quase não tem flores.

      Beijinhos

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  6. Muito bonito este poema de David M. Ferreira que eu desconhecia!
    Agradeço que o tivesse publicado, adorei!

    beijinho
    mhelena

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    1. Olá, Maria Helena.
      Gosto de a ver por aqui. Muito obrigada pela visita.
      Beijinhos

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