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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ANDAIME

O tempo que eu hei sonhando

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado.


Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.


A ‘sp’rança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobre mais que minha ‘s’prança,

Rola mais que o meu desejo.


Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos breves

Passam – verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.


Gastei tudo que não tinha.

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.


Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!


Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.


Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças –

Mortas, porque hão de morrer.


Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim –

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser – muro

Do meu deserto jardim.


Ondas passadas, levai-me

Para o alvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.


Fernando Pessoa - Cancioneiro

4 comentários:

  1. Sem os sonhos a casa nunca chegaria a ser erguida...

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  2. A Cidade do Sonho
    Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
    O caminho que leva à Cidade do Sonho...
    De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
    Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.

    Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
    Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
    Todo branco a luzir numa noite de Estio,
    Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

    Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
    Deves empreender essa jornada louca;
    O Sonho é para nós a Terra Prometida:
    Em beijos o maná chove na nossa boca...

    Vistos dessa eminência, o mundo e as suas
    [sombras,
    Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
    O mais estéril chão tapeta-se de alfombras,
    Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.

    Nela mora encantada a Ventura perfeita
    Que no mundo jamais nos é dado sentir...
    E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
    A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

    Que importa o despertar? Esse instante divino
    Como recordação indelével persiste;
    E neste amargo exílio, através do destino,
    Ventura sem pesar só na memória existe...

    António Feijó, in 'Sol de Inverno'

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  3. Isabel!

    Vale a pena visitar o seu blogue!
    Há sempre poemas tão lindos, tão bem escolhidos....e eu adoro poesia...
    Hoje, felizmente, venho cheia de poesia liiiiinda!
    Estive numa palestra na TERTÚLIA, sobre David Mourão Ferreira e,.....deliciei-me! Há coisas lindas na vida que nos encantam e nos dão força para andarmos para a frente e esquecermos o que nos preocupa e atormenta.. :(
    Bejinhos Isabel
    MHelena
    MHelena

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