Um lápis e um bocado de papel; um vidro de janela onde o vapor se condensara e a ponta do dedo, às vezes até os lábios ou a ponta do nariz; um caule rico em seiva e a parede exterior do prédio; até mesmo um pau e o chão pouco pisado, serviam para dar largas à imaginação. Eu desenhava.
Como prémio, em função dos materiais usados, ganhei alguns castigos, uns mais dolorosos, outros menos, mas não foi isso que me impediu de desenhar.
Os lápis de cor não me entusiasmavam. Eram demasiado duros. Possivelmente as marcas não proliferavam e o espírito economicista de meus pais mandava que para “estragar” se comprasse material barato. Como uns lápis “Caran d’Ache”, a que só tive direito muitos anos mais tarde, em vez dos “Viarco”, teriam feito as minhas delícias!
Mesmo para escrever, só gostava de lápis N.º1 e ainda hoje, nas lapiseiras, uso minas B ou 2B em vez das HB, que toda a gente prefere. Sempre apreciei uma escrita vigorosa em que o traço acaricia o papel.
Entrei na escola primária e concluídos os primeiros anos, ensinaram-me desenho à vista, sem qualquer noção de perspectiva. Começou então, o meu enamoramento com a luz.
Um dia a Ditinha trouxe de Lisboa para o Tó um livro em que bastava passar um pincel molhado em água para as figuras adquirirem lindas cores. Descobertos os pincéis, foi uma festa ajudar a colorir a história, mas só aos dez anos fui dona e senhora de guaches e aguarelas, que pude manusear a meu belo prazer. É também, a partir desta idade, com a entrada no Liceu Nacional de Leiria, que passo a ter uma disciplina específica de desenho e a contar com professores excelentes, na área.
O meu primeiro professor de desenho, no primeiro e segundo ano do Liceu, foi o Arquitecto Tavares Nunes com quem aprendi o gosto pelas cores quentes e a liberdade de pintar dispensando pincéis, usando simplesmente as mãos. Com os dedos passei a pintar céus fabulosos e prados verdejantes. Desafio, quem nunca o fez, a experimentar a sensação de mergulhar as mãos na tinta e pintar com elas uma tela.
Seguiu-se lhe, no terceiro ano, o Arquitecto Célio Cantante. Então, aprendi o gosto pelo pormenor e encantei-me com a caricatura que anos mais tarde cheguei a tentar.
Aconteceu também no terceiro ano, ser aluna a História, do Dr. José Gonçalves. É ele que me alerta para a representação do movimento em arte a propósito da pintura egípcia.
Um dia, teria treze anos, ouvindo falar em pintura abstracta e não sabendo o que isso era, resolvi pintar um quadro. Entornei tinta cor-de-rosa, ainda não homogeneizada, sobre uma folha de papel, dei movimento à mancha, deixei secar, apus um título: “O menino e o cão” e fixei a obra, na parede do meu quarto, do lado direito da minha secretária. A minha mãe entrou, eu fingia que estudava, mas expectante aguardava, reparou na novidade, aproximou-se, leu o título e deu uma sonora gargalhada. Que frustração! Foi neste instante que a arte e eu ficámos de candeias às avessas.
E tendo tido desenho só até ao antigo quinto ano do Liceu, fechou a sequência o Dr. Padrão. Com ele aprendi a verdadeira técnica do desenho à vista. Finalmente, soube onde se situavam os focos e como se respeitava a perspectiva.
Aprendi, porque terá de ser assim que a obra nasce e não de outra maneira, que a cinco por cento de talento e outros cinco de inspiração se têm obrigatoriamente de somar noventa por cento de trabalho persistente.
Tinha jeito. Todos eram unânimes. Faltava o talento, tinha alguma inspiração, mas as inúmeras actividades por que repartia o tempo, não permitiam o tal trabalho persistente.
No sétimo ano deliciei o professor de ciências com os desenhos dos preparados das lamelas que espreitava ao microscópio, nas aulas de Trabalhos Práticos. Os preparados de botânica eram os que exigiam mais paciência, mas também eram os que mais me encantavam reproduzir pela exuberância das cores.
Na Escola do Magistério Primário fui aluna de D. Helena Silva e é com esta senhora que aprendo as mais variadas técnicas, muitas das quais ainda hoje identifico em trabalhos de pintores contemporâneos. Dará para acreditar que só então, aos dezoito anos, tive direito a uns lápis de cor e de cera de marca Caran d’Ache? Felizmente as outras marcas não eram suficientemente boas para permitirem as técnicas que éramos obrigadas a experimentar. É também com esta professora que sou treinada para ver para além do quadro como produto final e passo a tentar entender as opções de quem o realizou.
E a vida foi-se cumprindo, desenhando, pintando e fazendo outras coisas, muitas vezes mais funcionais, mas que mesmo assim permitiam que exercitasse a imaginação, que desmontasse conceitos e combinasse os atributos da forma desusada, ganhando os epítetos de habilidosa e criativa.
Há alguns anos a minha filha mais nova insistia “vai para a pintura”. Eu, mãe extremosa, retorquia “Não vou porque sou vossa amiga. Depois, quando morrer, ficarão para aí os monos e vós, em vez de os deitardes fora, ficareis com eles porque foi a mãe que os pintou. Não vos quererei a armazenar lixo”, mas a insistência foi tal que achei que a única forma de lhe pôr fim era mesmo pintar um quadro.
Pensei no mote, adquiri tela, pincéis e tinta e apresentei-me numa aula de pintura dizendo ao que ia. “Traz um postal com o Castelo de Leiria?” Não, não levava e para que seria? “Para ampliar” e eu sem entender porque teria de ampliar o castelo ele já não era suficientemente grande? “É capaz de o pintar sem o copiar de algum lado?” Aqui, eu já tinha perdido a paciência. Eu, uma fã incondicional dos impressionistas ter de ampliar o castelo de um postal…
Peguei nas tintas e nos pincéis e no que restava do tempo de aula fiz jus ao mote:
“Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não”
- Voltarei na próxima aula, pretendo, com o quadro já seco, pintar um nevoeiro cerrado.
Voltei, mas a senhora não soube ensinar-me a pintar o nevoeiro. Eu também não sabia. Tentei mas não resultou. Mesmo assim ofereci o quadro à filha, que fez o favor de o pendurar na parede e não mais insistir para que pintasse.
A arte e eu continuamos de candeias às avessas.
Nhã, com essa conversa toda não me convenceu!
ResponderEliminarVoluntarizo-me, desde já, para encorpar uma petição pública:
"Isabel Soares, nunca é tarde para recomeçar...a pintar!"
;)
as-nunes: onde é que eu assino?
ResponderEliminar:)
"Se achares que precisas voltar, volta!
ResponderEliminarSe perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!"
Fernando Pessoa
E sempre...sempre!
Mantém o Coração bem quente.
Olá, António.
ResponderEliminarRecomeçar pressupõe que alguma vez se começou. Não é o meu caso. A petição não se me aplicaria.
Obrigada pela gentileza e disponibilidade, mas sou um caso perdido (lol)
Olá, Rui.
ResponderEliminarOlhe que isso de assinar de cruz é perigosíssimo. Sabe lá em que encrencas se poderá meter... :)
E se eu lhe oferecesse um quadro? (lol)
Olá, Olímpio.
ResponderEliminarTão profícuo em sugestões! Escolho "agarrar o amor", mas, por mais que procure, não o acho. Terei as lentes embaciadas? :)
Para aquecer o coração já encomendei uma saco de água quente, na farmácia lol
Olímpio,
ResponderEliminarEste Fernando pessoa deve ser primo direito daquele William Shakespeare que eu encontrei na NET (e postei no blog):D, mas que o texto é bonito é inegável.
Gostei. Muito obrigada.
Um abraço.
É! Bem prega frei Tomás!...
ResponderEliminarDizia alguém que, o amor, não se procura, encontra-se.(Também se diz que os poetas mediterrânicos falam muito no Destino (Fado?)- Seja como for, T.E. Lawrence dizia: -"Nothing is written."
Saco de água quente??!! Não!!
Chuva quente...Chuva na savana, sol no Coração!
(Os Shakespeares, Pessoas, Camões, e outros que tais,devem ser todos primos, e, alguns, até irmãos!)
Abraço.
Ok, amigo. Cá fico à espera de "tropeçar" nessa "pedra".
ResponderEliminarFado, não. Não acredito que haja um sádico de serviço a escrever certos episódios da nossa vida. Estou com T. E. Lawrence "Nothing is written"
Sugiro a observação de
ResponderEliminar"you tube Artur Franco Castelo de Leiria"
talvez ajude a resolver o problema do nevoeiro.
Olá, "euchavi"
ResponderEliminarSegui o seu conselho, mas não vi Artur Franco pintar qualquer nevoeiro. Continuo sem saber como se faz. Além disso, no vídeo recomendado a pintura é feita a óleo e eu pinto com acrílicos.
De qualquer modo, obrigada pela sugestão. Registo o seu interesse e boa vontade. Bem haja!