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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

COISAS SIMPLES


“Muitos prodígios há; porém nenhum maior que o homem”
Sófocles, in Antígona, séc V a.C.

Os dias têm acontecido tão igualmente calmos, num sossego de alma tão desusado em mim, que eu própria me espanto. Será isto a velhice? Este desfiar de horas, cerzindo os dias sem desejar nada, sem esperar nada, roçando o vazio e sentindo prazer nisso?

Um qualquer dia do mês passado, entrei num supermercado onde me garantiram que encontraria o batido que procurava. Escolhido o que pretendia entre alguns mais, dei uma olhada aos expositores e vi aquela faca verde, uma faca de cabo e lâmina verde. Todos sabem o que é uma faca; não sei se já todos viram uma faca verde. Eu nunca tinha visto. Também havia cor-de-rosa e laranja, mas foi por aquela verde que me decidi. “Uma faca verde para matar o Cavalo Verde” e sorri.

Durante anos a fio, em que a vida se fez das melhores opções, nas circunstâncias que impunham decisão, quando tantas vezes as melhores opções não coincidiam com as que apeteciam, quando tantas vezes me senti a página por virar do livro aberto, o Cavalo Verde, aquele tronco deitado de figueira no quintal de minha avó Isabel, companheiro incondicional das brincadeiras solitárias, virou sonho. E foi esperança e foi luz e foi riso e foi força, para numa manhã do último Setembro, caminhando pela baixa-mar, equilibrando-me na orla da concha de S. Martinho, onde tantas vezes me alongara, descobrir que o Cavalo Verde era eu: o sonho adiado de mim.

E imersa em realidade, consciente da inalterabilidade do que quer que fosse, deixei cair a lança com que quixotescamente arremetia contra moinhos de vento. A vida chamava-me…

Foi depois deste passeio que, casualmente, vi a faca verde. Comprei-a. Não lhe atribuo qualquer importância, é mais uma que não se adapta à minha mão (que o digam os golpes do dedo mindinho e do médio, da mão esquerda, conseguidos hoje quando a usava) mas lembra-me que existo no direito de ser como sou.



Hoje inventei um prato culinário só para mim. Almocei feijoada de pérolas em cama verde. Era um verde diferente, lugar-comum imaginado feito daqueles feijões que o JS me ofereceu e que em vez de verdes são brancos com riscas roxas. Acompanhei o pitéu com um Chardonnay, “Reserva dos Amigos”, bebido em taça de cristal, que abri propositadamente para mim. Depois desci devagarinho até ao centro da cidade, olhando em volta, num primeiro olhar...

Ah! Como os pequenos prazeres tornam os dias aprazíveis!

8 comentários:

  1. Cuidado com essa faca verde! Se for de porcelana, como algumas bonecas, além de cortar a torto e a direito, se cair... pode quebrar.
    Prescindo dessa "zurrapa" e do pitéu mas vou repetir a última frase:

    "Ah! Como os pequenos prazeres tornam os dias aprazíveis!"

    Bem haja por os partilhar.




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    1. Só prescinde do pitéu porque não provou. Estava supimpa, aromatizado com salsa e coentros, a puxar ao pico, mercê do tabasco. E a tal "zurrapa" do Chardonnay?! Uma brisa suave a retemperar o fogo... e num copo fininho, que até apetecia morder. :))

      Aviso: vou fazer queixinhas ao António, para que saiba o que chama ao vinho que ele produz. A faca verde também corta língua mal dizentes... :))

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  2. Estou aqui de passagem. Parece que o ambiente não está nada mau.
    Que melhor que conseguir saborear as coisas simples da vida?

    Vou dormir...
    ;)

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    1. Dormir... era o que eu deveria estar a fazer.
      Desejo-lhe uma santa noite.

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  3. Por acaso até nem foi por, dois motivos essenciais: o primeiro e o segundo: 1º, a partir do final da tarde comecei a sentir problemas digestivos (estômago? não será de admirar); 2º sobreveio-me uma dor de garganta durante a noite, que acordei e tive que ir ao chazinho quente e duas colheres de mel.

    Aquelas coisas simples do nosso dia a dia, que temos que aceitar e aguentar.

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    1. Lastimo que estivesse indisposto. Isso não são coisas simples, são coisas aborrecidas, que nos incomodam.
      Desejo as suas rápidas melhoras.

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  4. Respostas
    1. Eu e os sportinguistas só temos em comum a esperança e ambos esperamos, teimosamente, para além do tempo.

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