Estava uma tarde chuvosa, que
convidava ao conforto. A noite anterior fora mal dormida. Dores no pé torcido e
na pele que faltava no joelho acordaram-na frequentemente. Considerara mesmo a
hipótese de uma ida ao hospital quando fosse manhã, mas depois levantara-se “ora,
tu aguentas… já te aconteceu pior” e, enfiada na meia elástica, ficou-se naquele triste consolo do
irremediável. Teria de esperar para que passasse.
Apeteciam-lhe palavras redondas,
pequeninas, sussurradas, numa mistura de afagos inocentes. Apetecia-lhe mimo.
O dia foi-se cumprindo com as
limitações óbvias e, à tarde, antes de partir rumando afetos, foi à conferência.
Só o seu olhar estético se debruçara sobre o tema, seria interessante saber
algo mais para além disso.
Tropeçou num sorriso luminoso,
daqueles em que apetece mergulhar, como diz o poeta e que afagam a alma, digo
eu, a narradora, porque ela não disse nada. Deleitou-se. Apenas.
“Quando é que esta atividade se
transformou em arte?” Eis a questão interessante. Considerou: a forma “transformou”
fala de um processo longo, demorado. Se fosse um brasileiro a falar diria “virou”
e a noção de tempo seria outra: em vez de privilegiar o gesto repetido, a
aprendizagem da perfeição, focalizaria o momento criador, o raio de luz, a
ideia luminosa, a exaltação do nascimento… “Como as palavras nos espartilham!”
Reconheceu…
Fechou os olhos. A voz tinha
cambiantes graves de tonalidades que apeteciam, deixando adivinhar, sem
exaltação, o prazer que o tema proporcionava ao homem que tinha à sua frente. “Lê-me
poemas e conta-me histórias de encantar.” Corrigiu: “Lê-me só os poemas. A
encantar estás tu, aqueles que te ouvem aqui.”
Apeteciam-lhe palavras redondas,
pequeninas, sussurradas, numa mistura de afagos inocentes. Apetecia-lhe mimo. Não
tinha. Ponto final.
Abriu os olhos. Ah! Não fossem
pensar que dormia, só porque se deleitava na escala musical da voz que ouvia.
Continuou atenta e brincou para o lado.
Depois partiu. As obrigações não
lhe permitiam ficar até ao fim.
Na rua a verdade era outra. Era nua
e cinzenta, naquela tarde de outono. Aristótles martelou-lhe o cérebro, numa
lógica da treta “as palavras redondinhas são para quem as merece; se não as
tens; é porque não as mereces.”
Já se viu um pé torcido e um joelho esfolado transformarem a gata
borralheira em princesa de conto de fadas? Que mau feitio! Exclamarão alguns. Nada disso. É só uma observação da
narradora, que não se furta ao sarcasmo que altera o rumo da história.
Esquece e faz-te à vida!
Enfiou-se no carro e partiu. “Ah!
Aquela música não. Hoje prolongaria a tortura.” Parou sem reparar aonde.
Felizmente, não havia trânsito… Mudou o CD e seguiu viagem…
Começou a chover…
A escuridão abateu-se sobre a
lonjura e choveu mais, ainda mais. O céu desfazia-se lastimando o seu
desconforto de alma.
Sempre fora assim: resistia tão bem à dor, que ninguém reparava na sua
fragilidade.
A pele que faltava no joelho
continuava a doer e o pé… o pé também.
Morrer há-de ser pior.
Tá melhor do dói-dói?
ResponderEliminarVou soprar daqui com muita força para a dor aliviar
Não me custa nada tentar
Quero ver o sorriso da "Belita" regressar
:)
O dói dói há de passar
EliminarTerá de esperar por isso
Mesmo com o pé a doer
Ela não perde o sorriso
Agradece a sopradela
E as palavras também
A melhor cura da alma
São os amigos que tem.
Um abraço.
Belita