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quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O SEGREDO


Em menina, viajava muito de comboio. Obviamente! O meu pai era ferroviário. E só gostava de viajar em primeira classe, confortavelmente sentado naqueles estofos aveludados de cor granate protegidos por panos brancos aonde poderíamos, confiadamente encostar a cabeça. A minha mãe, que sempre gostou de se ver rodeada de gente, detestava o isolamento das carruagens de primeira classe e sacrificava o conforto do assento ao contacto com as pessoas. Normalmente o meu pai cedia, mas quando a enchente era grande cedia a minha mãe.

Eu era uma garota tímida, pouco faladora, que olhava tudo muito atenta a pormenores. Quem me conhece agora, rir-se-á descrente, mas, na verdade, sou uma tímida que aprendeu a comunicar, sem nunca ter perdido a consciência das mãos. “Tímido é aquele que tem mãos” – alguém terá dito. Por experiência confirmo que é verdade. Acontece-me ter sempre consciência das minhas quer me dirija a uma plateia e sou capaz de o fazer sem texto previamente escrito, quer quando faço teatro.

Pois nessas viagens, de que as maiores foram entre Lisboa e Tamel, sentada junto da janela, e no inverno, tantas vezes com o dedo, desenhando no vidro (o que não estava autorizada a fazer em casa), com a boneca no regaço ou deitada na pequena mesa que havia nas automotoras, gostava de olhar as pessoas. Apreciava o jeito como se acomodavam, se encostavam a cabeça, se cruzavam as pernas, se as abriam, se simplesmente as juntavam, se cruzavam os braços, se dormiam, se conversavam. Reparo agora, com espanto, que nunca me detive na roupa. Não recordo uma única cor a não ser o azul dos olhos de um senhor meio careca, que achei que deveria parecer-se com o Menino Jesus. Hoje sei que me focava em sinais de comunicação não-verbal. Porquê? Não sei. Sei que ainda hoje esses sinais me fascinam.

E lembro-me que olhava… Tinha um olhar calmo que pousava no que observava, persistente, um olhar absorvente, um olhar de mata-borrão. Quantas vezes me disseram: “Não olhes assim!” E se ainda hoje me distraio a olhar, as filhas reclamam: "Mamã! Excesso de atenção…" E eu ainda a achar que só olho porque gosto de ver, sobretudo de perscrutar para além do que os olhos vislumbram.

“Qual será o segredo do senhor careca?", “Qual será o segredo da senhora do totó’” …

Porque acharia que todos tinham um segredo? Talvez porque em nossa casa, onde todos ou quase todos os assuntos eram falados à mesa, havia alguns que eram segredo, havia alguns de que não poderíamos falar senão os quatro. Eram o nosso segredo.

E as pessoas saiam e entravam ao sabor das estações e eu a olhar: “Qual será o segredo?”

Hoje desci a pé até à cidade. Foi uma forma diferente de saborear o sol matinal. Andei pela cidade e antes de iniciar o regresso, sentei-me na esplanada coberta de “Aldeia dos Sabores”, na Praça Rodrigues Lobo e, enquanto bebericava o café, lembrei-me desta mania de menina por conta do senhor Fialho.

O senhor Fialho é uma doçura de velho que vive no Lar Emanuel, tal como minha mãe e muitas outras pessoas.

Não sei como nos tornámos amigos. Nem sei se foi ele que meteu conversa comigo se fui eu que tomei a iniciativa. Aconteceu. Seria talvez por conta dos trabalhos de tecelagem em que se empenhava, coloridos e perfeitos, ricos de cor e entusiasmo. A seguir foram as fichas de matemática e português que realizava nas aulas de animação e que gostava que corrigisse, sabendo-as rigorosamente certas. Enfim, vamos conversando e brincando um com o outro com a benevolente aquiescência da dona Delmira, a esposa e com alguma ciumeira da minha mãe.

Nos finais de Dezembro, um qualquer dia depois do almoço, quando apressadamente saía do refeitório, depois de auxiliar a minha mãe a comer, o senhor Fialho chamou-me. Voltei atrás. “A senhora que é professora, deve saber história e geografia”. Eu brinquei “dizem que sim, mas não sei se será verdade…” “queria fazer-lhe uma pergunta” – continuou ele “então força! Se souber, respondo” – animei-o. “Nos Estados Unidos há um prédio com doze andares (e eu condescendente com a ingenuidade do que acabara de dizer-me pensei “quantas vezes doze?!!!”) – ele continuava “o primeiro chama-se Janeiro; o segundo, Fevereiro; o terceiro, Março e por aí fora até ao décimo segundo que se chama Dezembro. Há um elevador que liga os andares. Sabe dizer-me como se chama o elevador?” e eu “ano”. O senhor Fialho riu-se “não, é carregando no botão”. Ri-me com vontade “seu malandro! Apanhou-me!” Um pouco mais atrás a dona Delmira também se ria “deixe lá que todos se enganam”. “Senhor Fialho, quantos anos tem?”- curiosa, queria saber. “Quantos tenho não sei, só sei os que já não tenho”. Bom, naquele dia, estava visto que eu não levava a melhor fosse como fosse, mas lá consegui saber que brevemente somaria noventa e três. Saí a rir “ora toma! O velhote comeu-te as papas na cabeça”.

No dia um deste mês, voltou à carga. “Diga-me se sabe esta: onde é que os homens têm mais carne pendurada?” “No talho”- respondi, transformando-lhe o sorriso maroto em desapontamento. “Estou a ver que já sabia esta. Hoje é o dia do meu aniversário”. Felicitei-o com dois beijinhos e a conversa ficou por ali.

Ontem, levantou-se da mesa onde tomara a refeição e aproximou-se daquela onde eu auxiliava a minha mãe.Interpelou-me: “Quando é que dois e dois não são quatro?” “Ah! Mas nem faço ideia!” brinquei perante a questão tão estafada. “Não sabe mesmo?” – ele fazia suspense, saboreando a vitória e a dona Delmira rindo lá da mesa: “ontem estava a morrer, hoje já inventa histórias…” “é quando a conta está errada” ”pois apanhou-me de novo!” e ri da sua satisfação.

Esta manhã, o mergulho na chávena de café trouxe-me à lembrança a questão sem resposta da menina que fui e em mim algo apontou de dedo esticado o senhor Fialho.

Todos estamos na vida, o segredo é a forma como estamos.

O Segredo é Amar

O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.

Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.

Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.

Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!

Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"


2 comentários:

  1. "Um olhar de mata-borrão"...
    Agora que foi revelado, já não é segredo.
    :)

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