Em pequeninos brincaram com caracóis? Eu
brinquei. A minha memória recua até aos cinco anos. É normal. À época, eu
residia com meus pais e irmão no primeiro andar esquerdo de um prédio de quatro
fogos que tinha, em frente, pelo lado da entrada, depois de um espaço cimentado,
um terreno de que o meu pai cuidava a meias com o vizinho do primeiro direito
por desinteresse do que habitava o rés-do-chão direito. Por baixo de nós não
morava ninguém.
Na metade da responsabilidade do meu
pai, o Coquelimoque (tenho pena, mas não sei o verdadeiro nome do homem)
cuidava de uma pequena horta e de um ainda mais pequeno jardim. Também havia
árvores de fruto. Lembro-me bem do pessegueiro aonde, um dia, fiquei pendurada
pelo cós do bibe novo que vestia. Na outra metade do terreno que não era da
responsabilidade do meu pai, nem dependia do trabalho do Coquelimoque, eu
estava proibida de pisar.
Havia também uma pequena casa de
madeira, que o meu pai que, embora com pouca habilidade sempre adorou pregar
pregos, construiu, penso que com ajuda de alguém entendido (estava bem feita de
mais para ser só obra dele), para guardar as ferramentas e alfaias.
Nesse espaço, eu brincava livremente,
sobretudo depois do almoço, período em que a minha mãe se dedicava à leitura e
não gostava de ser interrompida.
Era então que eu dava um jeito nas
couves. As acabadas de plantar estavam sempre tombadas, tristes e eu tentava endireitá-las,
alegrá-las, mas, defeito do Coquelimoque que as plantara mal, ou excesso de
zelo meu, aquelas em que mexia acabavam invariavelmente na minha mão. As que
sobreviviam aos meus desvelos, ganhavam folhas aonde se deleitavam caracóis.
Eu gostava dos caracóis, daquele
deslizar verde, lento e silencioso, pela couve rugosa com os pauzinhos ao sol.
E queria ajudar. Achava que na borda do tanque de lavar roupa, superfície lisa
de cimento, já tão polida pelo uso, deslizariam melhor. Levava-os para lá. Os
caracóis, mal lhes tocava, encolhiam-se na concha e não havia jeito, nem modos
de os fazer sair.
“Caracol, caracol, põe os pauzinhos ao
sol…” e ele não punha, por muito que insistisse.
Há pessoas assim. Quando nós pensamos
que deslizam calmamente na nossa direção, que nos desnudam a alma e permitem a
nossa aproximação, enconcham-se. Ora, se se enconcham é porque não confiam, ou
porque não querem que os conheçamos, ou porque sim (a melhor de todas as razões
para tudo). Não há nada a fazer, a não ser respeitar os seus avanços e recuos,
a sua forma de deslizar pela vida.
Na verdade também sou assim (haverá alguém que não seja?). Desnudo a alma umas vezes e escondo-a muitas mais. Ainda há dias, há noites, para ser mais precisa, um amigo, um velho amigo, que me apanhou a espreitar, fora de horas, no Facebook, me enviava um poema noturno seguido de uma mensagem: "Também podias escrever uns poemas noturnos, quiçá marcados pela insónia." “Lá poder,
podia... (respondi eu) É por pudor que não o faço. Gostaria que o melhor da
minha alma fosse para um homem. Para o meu homem. Depois, também tenho uma
certa caridade por quem me pudesse ler. Acho que nunca escrevo suficientemente
bem para encantar os outros. Problemas de autoestima”.Fechei o PC
e deitei-me.
O caracol de todo esticado na folha de couve, recuara apressadamente para a concha. Depois fiquei com
remorsos. “Por que razão fora tão intempestiva?” Bastaria dizer que não sofro de
insónia. Que sofro de lonjura. Que às vezes a minha alma é um mar tempestuoso e
que eu, barco de papel, em noite de breu, agarrada ao leme, vogo assustada
nesse imenso oceano, sem carta de marear, nem bússola com que defina a rota.
Quisera
possuir a força de que me julgam feita. Não passo de fraqueza reciclada.
Lendo-a, "os seus avanços e recuos...", lembrei-me da metáfora no filme "O Carteiro de Pablo Neruda".
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=fbTmmx_579A
P.S.: Mais fraco sou eu, só que disfarço melhor.
:)
Adoro metáforas. Ando mesmo sedenta por um texto literário, um romance bem muito bem escrito. Nem sei que ler! Ando às voltas com o livro do mês da Arquivo e sem cabeça para ler vou ter de voltar ao princípio...
EliminarTodos nós, Isabel, todos nós! Penso muitas vezes. «não sou tão forte como pareço nem tão frágil como me sinto.»
ResponderEliminar:)
Não vale desistir, não é?!
EliminarOntem foi mesmo um dia mau. Este já passou. Outros virão, por certo. É inevitável.
ResponderEliminarBem haja a vossa solidariedade.
Um forte abraço.
AGORA NÃO TENHO TEMPO PARA SABOREAR ESTE TEXTINHO....MAS VIREI EM BREVE... penso que me irei deliciar :)
ResponderEliminarEmbrulhei tantos caracóis... :) :)
Bjnho
E voltei com muita brevidade!
ResponderEliminarE,....deliciei-me com este texto liiindo, em que recordou momentos da sua infância!!!...
E,...recordei também momentos similares em que disse as mesmas lenga-lengas---caracol, põe os pauzinhos ao sol...momentos liiindos que vivi brincando e saltando dentro de "couvais" com caracóis que faziam os meus encantos...
Que bom foi lê-la e recordar os tempos em que saltava e corria na quinta, à beira rio, onde fui criada...
Obrigada, Isabel, por este belo encantamento!!! :)
Muito obrigada, Maria Helena, pela boa vontade com que lê os meus simples textos. É mesmo muito generosa nos seus comentários. Ainda me convenço... :)))
Eliminar