Há dois dias que bebia um iogurte
líquido ao pequeno almoço. O leite, até o leite acabara. O leite, que gosto de
sentir, manhã cedo, a escorregar pela garganta disputando a vez com a torrada.
Peguei na lista das compras e saí,
disposta a demandar o Continente, onde pensava abastecer-me do que faltava em
casa.
Enfiei-me no carro e já na IC2
levantei os olhos para o céu: “em S. Martinho há neblina” – “Ah, Agustina! Com
que precisão nos aparentas a alma com a água, a neblina e a brisa…” Dias antes consultara
o horário das marés, pensando que hoje seria a melhor manhã para um passeio
pela praia, dado que a baixa mar se verificaria às doze horas e trinta. Ainda nem eram onze… “E se fosse
a S. Martinho?” “porque não vais?” pareceu-me ouvir a voz da filha mais nova
que comunga estes gostos de evasão.
Pavarotti cantava, com aquela voz
limpa, de prodigiosos “dó de peito” como mais ninguém é capaz de extrair e eu,
em vez de rumar para a faixa da direita, segui em frente mais uns metros. Só
depois virei…
Parei na área de serviço da Nazaré.
Tirei da carteira o telemóvel, uma nota de cinco euros, que guardei no bolso
das calças e fechei a carteira no porta bagagens do carro. Estava pronta a
desfrutar o meu passeio à beira mar.
Em Alfeizerão, havia uma promessa
de sol forte, que me acompanhou, estrada fora, até à entrada de S. Martinho. “Ter-me-ei
enganado a ler os sinais dos céus?” Ri. “Só o Cavaco nunca se engana e
raramente tem dúvidas…” Mas, não. Não me enganara. Em S. Martinho havia uma
breve neblina, à medida do que me apetecia e que se encaminhava barra fora, para
o mar largo.
O Verão fora-se antes de tempo,
não havia barracas na praia, nem bares de tábuas. Havia algas, muitas, muitas
algas que agudizavam o cheiro a mar e quase anulavam o cheio quente da duna em
que o vento sul ondulava. E neste misto de odores, com os olhos cheios de mar,
avancei praia fora, indevidamente tão próximo da água, que mesmo calçada acabei
molhando os pés.
O senhor abriu o sorriso muito
antes de passar por mim: “Bom dia. Bela manhã!” Sorri, retribui o cumprimento,
mas não alimentei a conversa “desculpe amigo, só sou simpática uma vez por dia
e estou a guardar-me para o compromisso desta noite” pensei continuando o
caminho.
Alonguei-me pelo areal, deliciada
com o marulhar das ondas miudinhas. De humano só o movimento de um ou outro veraneante,
tal como eu dono do tempo, do seu tempo, ou melhor, do que resta dele e quatro
tratores labutando na apanha das algas.
A O.C. telefonou: “adivinha onde
estou…” “Lisboa!” “frio” “S. Martinho. Sozinha?” “comigo”
Em Salir, meti pelo passadiço das
dunas. Como poucos metros de cota dão uma perspetiva tão diferente! À beira-mar
comunga-se, é-se paisagem, dali contempla-se, admira-se. O cheiro da duna era mais forte
amaciando o cheiro das algas que, em baixo, continuavam por recolher. E eu
saciava os olhos de vida, da vida que flui ao sabor das marés e que indiferente
à minha finitude continuará, para além de mim, a regozijar os amantes do belo.
As Paula Urban que calçava
reclamavam cheias de areia. “Temos pena. Não seria este verão que
desceriam à praia, mas malhar-vos, gastar-vos é sinónimo de que usufruímos juntas
a paisagem. Foi o vosso destino que se antecipou” e descalçando-me, sacudi pés
e sandálias e continuei.
Pouco faltava para as treze
horas. Hora de almoço. “O Ocean Place estará aberto?” Estava. Quinta feira, dia
de cozido à portuguesa: meia dose, meio litro de água do Fastio (só degusto
vinho acompanhada) e dos cinco euros que levava ainda tive direito a um e
trinta cêntimos de troco… “A água está mais cara que a carne…” ironizei com os
meus botões e sentei-me à mesa, olhos postos no mar, saboreando a refeição.
Só faltava o café na BOEHMIA (será
assim que escrevem?). Passei pelo carro e peguei na carteira, mais uns passos e
sentei-me à mesa, na esplanada, olhos postos, lá longe, na duna, que teimosamente
sobressaia, como um espelho, na paisagem difusa, através da leve neblina da manhã, graça à luz do sol.
“Os espelhos não guardam as coisas refletidas! O destino é seguir… seguir para
o mar, perdendo as imagens no caminho”… Mário Quintana chegara sem ser
convidado…
O descafeinado apareceu de mãos
dadas com o açúcar que dispenso por adulterador daquele sabor forte que me
apraz, mas leio a frase impressa: “Uma noite vou percorrer todos os oceanos
contigo” Terá escrito um tal António Navarro. “Pois é, António. Há mar e mar… e
também há ir e voltar… Não é O’Neil?”
S. Martinho despiu-se de vozes…
Chegou o Outono do nosso apaziguamento.
"Casa onde não há pão" (não é o caso) já sabemos o que acontece, agora casa onde não há leite tudo pode acontecer, até uma ida à praia.
ResponderEliminar:)
Ah, Rui! Se eu fosse tão boa a cuidar da casa, como sou "arrumar" a alma... não me aconteceriam destas "desgraças"... Pecados de quem vive só... Desde que me aposentei tem-me acontecido situações de grande indisciplina. Quem diria?! Eu, antes tão bem programada, com o tempo tão bem gerido, tudo planificado ao segundo, deixar acabar o leite, o pão, os legumes para a sopa... e com o Pingo Doce aqui tão perto... Enfim, são as loucuras possíveis a quem deixou de se impor regras rígidas e vai saboreando a vida sozinha, ao correr do tempo, sem ligar às horas.
EliminarUma coisa eu garanto, soube-me melhor o vento no nariz, do que saberia o leite, nas duas manhãs em que bebi iogurte. Pelo menos os iogurtes não tinham acabado... :))
Como é bom ler ao ritmo dum bom texto, cheio de maresia, areia e mar duma baía, nostalgia (minha, pelo menos(*)), os pés em sintonia com a maré, palavras a insinuar a chegada do Outono deste ano!
ResponderEliminarSem etiqueta?
Então e "S.Martinho", "Mar", "Poesia", "Outono", "Como é bom viver"? E olhe que eu até nem tenho sido um frequentador de S. Martinho nestes últimos tempos!
Pelos vistos conseguiu viver mais uns momentos intensos e belos!
Parabéns!
-
(*)5 a 8 de Outubro de 1968, um casalinho, ele 22 anos, a iniciar o 2º trimestre da recruta, no Lumiar, conseguiu que o comandante da unidade lhe desse dois dias úteis de férias, o capitão Valério(da companhia, ... que ele era) pô-lo de serviço no dia 5 (dia do casamento)(**), ela mais 1 ano e alguns meses, passaram a "lua de mel" entre Alfeizerão e S. Martinho, deslocações de taxi, fotos junto a um barco no areal, nem sequer fato de banho levámos.
(...)
(**) lá consegui resolver o "milando" (problema, palavra macua, que aprendi quando, alguns meses depois, fui mobilizado para Moçambique... a Zaida também foi (!)) com uma nota de 50 escudos.
Obrigada, muito obrigada pelas suas palavras. Que gentileza a sua!
EliminarForam de facto umas horas muito boas. Sobretudo porque gosto da praia sem barracas e barulho excessivo. Saí de S.Martinho cerca das 15h e então fui ao Continente, para alegria do tio Belmiro...
Pelas suas palavras percebo que S.Martinho também faz parte da sua memória afetiva. Gostei de saber isso. Tem de voltar com a esposa festejando o amor que vos une.
A paisagem em S.Martinho é propícia a cumplicidades. Aconchega-nos e embala-nos na baía; engrandece-nos, quando do alto estendemos os olhos pelo mar largo; amedronta-nos com o rugido do Túnel e sempre contando histórias que podemos reinventar à medida da nossa alma. Em certos momentos, como Sophia, supomos que é um milagre criado só para nós...
Olhe só como em tempo 0,25€ era muito dinheiro... :))
O meu avô, que morreu com 93 anos, bebia meio copo (dos de água) com aguardente logo que se levantava. Dizia que quem bebe aguardente não sofre de úlceras. Morreu de uma gripe).
ResponderEliminarBem, não aconselho a aguardente, penso que preferia uma úlcera, tal o enjoo que tenho da dita cuja (cheiro).
Mas uma sande ou sandes de presunto e um copázio de tinto, era capaz de "morrer".
Durante dezenas de anos fui cliente da Nazaré. Era miúdo e apesar de ter nascido no Porto, fui com quatro anos para Castelo Branco, onde o meu pai foi colocado. Todos os Agostos e depois Setembros eram 15 dias na Nazaré e 15 dias em S. Martinho. A beleza desta baía atraiu-me durante alguns anos já depois de casado. Deixei de aparecer quando apareceram ( a redundância é propositada)as suiniculturas que iam acabando com a baía,, (para além da Lagoa de Óbidos). Penso que o rio em S. Martinho era, é, o rio Tornado, (penso!!!) Foi um "cano de esgoto", não só dos suinicultores, como da povoação.
Sei que foi construída uma ETAR e agora até tem bandeira azul.
Vou voltar, já que a brisa que descreveu e que chegou até aqui, deixou-me a nostalgia... de uns mariscos na Marisqueira "não sei quê ou quantos" que fica na marginal.
Comi umas lascas de pata negra que nunca mais esquecerei. Talvez o ar "salgado" nos redobre o apetite.
Então bom apetite para o próximo pequeno almoço...
Parece-me que já chega
Olá, José.
EliminarEntão o neto? Já joga à bola com o avô? Espero que estejam todos de boa saúde a usufrui da benção, que é essa nova vida.
Se eu bebesse 1/2 copo de aguardente caí para o lado... Pelo menos os iogurte não acabaram, cá em casa. Também havia chá e café, mas ao pequeno almoço eu gosto é mesmo de leite. O problema está resolvido.
Não creio que tenha sido o tal mata bicho que preservou o seu avô por tantos anos. A minha mãe tem 94, nunca bebeu vinho (menos ainda aguardente) e só agora, segundo me disse há dias, é que está a ficar velha, porque tem umas covas na cara "os olhos, não estão mal" dizia ela achando que não tinha pés de galinha... Eu achei esta conversa deliciosa, e não resisti a brincar "agora, mãe?"
Acho que a minha mãe, tal como o seu avô eram feitos de uma matéria muito resistente... Às vezes pergunto se sobrou alguma coisa para mim, mas não creio...
S.Martinho, atualmente, não tem nada a ver com essa praia de que fala. Também eu, nessa altura rumei à Foz do Arelho, por causa das minhas filhas, mas nunca deixei de visitar a praia dos meus encantos.
Este verão este inexcedível. A água estava límpida e nem sequer tão fria como em outros anos. O Sol não se fez rogado e só em duas tardes se ausentou para dormir a sesta.
Julgo que o restaurante que refere seria o "Oceano", mas agora há muitos mais para comer o que lhe apetecer, mesmo na marginal.
Fiquei feliz por lhe levar a brisa...